20041107

 
escrito para o Showlivre
Tim Festival, 5 de Novembro de 2004



O show do Kraftwerk não é um show é uma ópera no sentido original de uma arte que reúne
todas as outras e condensa tudo em algum conceito
desenhado através de uma narrativa.
A história contada durante o espetáculo é a
história da relação contemporânea entre homem e
tecnologia.
Um inicio perturbador sem imagens. Apenas
uma respiração eletrònica. Uma pulsação vibrando e
as luzes todas apagadas no palco. E o público em
suspensão. Vem surgindo da escuridão o portal para este outro universo de
som, imagem e idéias.
Um portal sonoro vibrando.Baixo. Dentro da escuridão, sendo atravessado pelo
público ansioso mas confiante. Sem imagens aparentes mas com muitas imagens de reseva para aquele som.


Então surge o tema principal da noite: The Man Machine. E
surgem os intérpretes, como sombras pretas sobre fundo
vermelho projetadas no tecido fechado. Os quatro
formam figuras hieráticas, semi-imóveis atrás de suas
extensões eletrònicas: os teclados e sintetizadores.
Machine, vai desenhando o telão sincronizado com a
música.
Vemos os quatro personagens tecnológicos que agora parecem mais
extensões das máquinas do que o contrário.
E dentro dessa afirmação, The Man Machine, que começa a aparecer em ritmo
hipnótico sendo escrita e reescrita na tela enquanto a
música toca dentro dessa afirmação terrível e
fantástica está o conflito do imenso poder que a
tecnologia exerce sobre nós. Pois sob o efeito da
mensagem e do som e das luzes, todos ficam
hipnotizados em uma imensa máquina humana conduzida pela
tecnologia que ocupa a tenda e a transforma na imensa
máquina de prazer que é uma festa.

Em seguida, na segunda música surge o primeiro
personagem dessa relação homem-máquina: as bicicletas.
A união perfeita do homem com a máquina, subindo as
montanhas em uma competição filmada: o Tour de France.
A bicicleta percorrendo a estradinha que circunda a
montanha, uma manada delas vencendo a montanha com a
força humana, percorrendo a estradinha e acompanhada
pela televisão, o olho eletrônico, de cima e de perto
ao longo do circuito. The Man Machine.
A bicicleta, o veículo moldado para a interação
direta com o corpo. Máquina que tira sua energia do
próprio corpo, animada pelo próprio homem. A
bicicleta: uma máquina com a forma do corpo com cada
parte tendo seu espelho na máquina, o guidão, os
pedais, o banco, um duplo energético da vontade humana
moldando a matéria para os seus propósitos. Uma
afirmação dessa união bem sucedida: homem-máquina.

E na próxima música a radicalização do conceito:
Vitamina. Uma descoberta científica dos elementos que
compõe e constroem e potencializam a própria máquina
do corpo.
Através de uma linguagem estética a relação
homem-máquina nos é apresentada pelo Kraftwerk de como nós mesmos somos parte de
sistemas complexos de interação mecânica e energética,
sendo em última análise também máquinas animadas pelos
elementos que a fazem.

Depois do show do Kraftwerk foi fácil encontrar
referências do som criado por eles em todas as bandas
que tocaram na mesma noite do tim festival: de Panjali Mc
â 2manydjs, passando pelo Soulwax e cansei de ser
sexy. Todos eles herdam um clima que vem de uma
certa batida eletrônica criada e aprimorada pelo Kraftwerk.

Os 3 bis do show apenas confirmam a vocação de ópera do
espetáculo. Em cada um dos bis, novos personagens
vão surgindo culminando com We Are The Robots no
segundo bis, onde apenas as máquinas voltam ao palco
paradas no mesmo lugar como seus donos estiveram
durante todo o show.
Mas essas máquinas, ao contrário deles, dançam.
Enquanto a música toca aparentemente sem um executor
humano agindo naquela hora, a dança das máquinas é
encarnação da própria dança de todos que participam da
festa.
Elas encarnam talvez a vontade de seus donos: tocar para
fazer os outros ouvirem, sentirem, dançarem e pensarem.

É claro que nem tudo vai bem com as máquinas
humanas.Muitos conflitos acompanham o domínio da
matéria pelo homem.
Em músicas como Computer World e Radioactivity surgem
verdadeiras sombras da herança desse contato com a
máquina: os mecanismos sinistros de controle social,
político ou econômico, CIA, Interpol, Deutsche Bank,
que ganham e muito com a chegada e o domínio do
computador, e o poder de destruição de que a
tecnologia é capaz: Sellafield, Chernobil e a maldição
das usinas nucleares que produzem um lixo virtualmente
indestrutível e irreciclável. A tecnologia que pode
destruir o seu criador se escapar do
controle a energia aprisionada pela máquina.
Radioactivity, enquanto vemos no telão as
fases da fissão nuclear, da reação atômica colocada a
serviço do homem para produção de energia.

E no final, para que ninguém se esqueça, o show
termina com uma Boing Bum Tchak (Music Non Stop), que soa irônica ao continuar
soando durante algum tempo depois que os músicos (eles
mesmos, que voltaram no terceiro bis) vão saindo um a
um até sobrarem as silhuetas dos quatro totens, as
palavras e o som: Music Non Stop.



Daniel Sêda, São Paulo, 6 de Novembro de 2004.

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